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domingo, 18 de julho de 2010

A vida é assim: a verdade, na História, chega sempre tarde...


Tenho o cuidado de hoje publicar um texto de Álvaro Cunhal, igualmente depois de reler "O Manifesto do Partido Comunista" que foi elaborado por Marx e Engels como programa da Liga dos Comunistas por decisão do seu II Congresso, realizado em Londres entre 29 de Novembro e 8 de Dezembro de 1847. Representava o triunfo dos defensores da nova linha proletária no quadro das discussões havidas no interior do movimento. Ainda em Londres e depois em Bruxelas, Marx e Engels trabalharam juntos na redacção do texto. Tendo Engels partido para Paris em finais de Dezembro, a versão definitiva foi elaborada por Marx fundamentalmente durante o mês de Janeiro de 1848 e remetida finalmente para Londres, onde viria a ser publicada, pela primeira vez, em fins de Fevereiro do mesmo ano. Transcrever este texto do camarada Álvaro Cunhal, divulgado no jornal Público (1 de Fevereiro de 1998) sobre o conteúdo e a importância histórica desta obra de Marx e Engels com vista a uma necessidade Histórica de refutar as "teses" essas sim gastas e quais Cd´s ou Dvd´s de repetição gastas em que pretendem criminalizar uma ideologia á qual aderiram milhões de seres humanos, outros milhares notáveis, que a história consagrou como exemplos. Hoje em dia, perante as dificuldades que temos assistido das sociedades a que o capitalismo obriga a sofrer essa maldita praga, em que tem que existir uma terra de "Amos" e "Escravos", onde neste neoliberalismo mortífero e destruidor de grandes conquistas sociais e do "dito estado-social Europeu", mais do que nunca plagiando Saramago, "ler Marx nunca foi tão actual", por isso mesmo é sempre importante invocar Marx e Engels, Lenine e Cunhal. Deixo aqui uma bela análise do nosso camarada Cunhal, onde tanto existe a dizer do Manifesto Comunista que, no espaço disponível, apenas alguns limitados aspectos seleccionados podem ser referidos num breve apontamento.

"1. Comemorar 150 anos do Manifesto Comunista de Marx e Engels é falar de um documento que - pelas suas análises, o seu conteúdo ideológico, o objectivo e a possibilidade que aponta de construir uma sociedade nova - lançou e promoveu uma luta revolucionária de alcance universal: a luta dos comunistas, que marcou e determinou as principais realizações e conquistas de transformação social desde então até aos dias de hoje.
Como anotavam as primeiras palavras do Manifesto, "andava pela Europa o espectro do comunismo". Ao longo do século e meio decorrido, continuou a "andar", agora pelo mundo, o mesmo espectro, a que as forças do capital chamaram "o perigo comunista". E, ao findar o século XX, ao mesmo tempo que proclamam que "o comunismo morreu", as campanhas violentas, constantes, universais, que lançam contra ele, mostram que não morreu mas está vivo e para viver.

2. O Manifesto Comunista é um extraordinário libelo acusatório contra o capitalismo.
Não apenas indicando a situação da classe operária e das massas trabalhadoras: os salários injustos, o desemprego, o tempo e intensidade de trabalho, as discriminações e falta de direitos da mulher, o trabalho infantil, os problemas da habitação e da saúde, o alastramento da pobreza e da miséria. Não apenas apontando medidas necessárias de carácter imediato. Mas também desvendando a natureza e as leis do capitalismo e apontando a necessidade e possibilidade histórica de superá-lo.
Esta simultaneidade da luta com objectivos a curto e a médio prazo e a luta pelo socialismo, caracterizou desde então a luta dos comunistas.
À luta dos comunistas, sempre estreitamente ligados à classe operária e às massas populares e promovendo as suas organizações unitárias, nomeadamente o movimento sindical, se devem, mesmo no quadro do sistema capitalista, importantes conquistas. A ela também se deve, com a revolução de Outubro de 1917 e outras revoluções socialistas, a prova na vida da actualidade histórica de construir uma sociedade nova, uma sociedade socialista.

3. É um marco fundamental dessa luta, a revolução de Outubro de 1917 e suas repercussões em todo o mundo.
A revolução de Outubro significou que, pela primeira vez, em milénios de história da humanidade, o ser humano se lançou audaciosamente à construção de uma sociedade sem exploradores nem explorados.
Significou a realização de profundas reformas nos domínios político, económico, social e cultural, com o melhoramento radical das condições de vida do povo e a eliminação de muitos dos flagelos sociais.
Significou, num curto período histórico, a transformação da velha, atrasada e tirânica Rússia dos czares, num país altamente desenvolvido, fazendo frente com êxito ao imperialismo.
Significou, pela sua influência e relações de solidariedade recíproca, uma nova e poderosa dinâmica do movimento operário internacional e suas conquistas.
Significou um papel determinante, pago com 20 milhões de vidas, para a derrota, na 2ª Guerra Mundial, da Alemanha hitleriana e da coligação fascista (Alemanha, Itália, Japão) que ameaçava impor ao mundo o seu domínio de terror.
Significou, em datas diversas, o estímulo a novas revoluções socialistas, - no leste da Europa, na China, em Cuba, no Vietname, na Coreia do Norte, no Laos - com características diferenciadas e contraditórias, mas inseridas durante décadas no mesmo sentido positivo da evolução mundial.
Significou, pelo exemplo e pela solidariedade, uma contribuição para a luta dos povos oprimidos, o desenvolvimento dos movimentos de libertação nacional, o ruir do sistema colonial e a conquista da independência por povos secularmente submetidos ao colonialismo.
A revolução de Outubro, pelo que foi e pelas suas repercussões mundiais, constitui o acontecimento histórico mais importante do século XX.
Não é por acaso que ataques, propaganda e campanhas anticomunistas têm tido sempre em todo o mundo dois alvos centrais: a revolução de Outubro de 1917 e a obra e papel de Lénine que, com o Partido Bolchevique, dirigiu a luta do proletariado russo e a revolução vitoriosa.
Ainda recentemente, quando do 80º aniversário da revolução, assistimos a uma furiosa, vil e orquestrada campanha, - com seminários, livros, programas nos grandes meios de comunicação social - apresentando a revolução de Outubro e a acção de Lénine, como histórias de odiosos crimes.
É natural que as forças do capital o façam. Sabem tudo quanto a Revolução de Outubro, Lénine, a URSS, e outras revoluções socialistas e nacional-libertadoras representaram na luta libertadora dos trabalhadores e dos povos.
Um partido comunista, para continuar a sê-lo, não pode, por atitude ou omissão, favorecer e ainda menos secundar tão reaccionárias campanhas. Outubro e Lénine são referências fundamentais.

4. Se a União Soviética, tal como outros países, sofreu uma evolução negativa, que a conduziu ao desastre, não foi por que tenha fracassado o ideal e projecto comunista. Foi sim porque, num complexo processo, cuja análise está por aprofundar, acabou por se instaurar um "modelo" que deixou de corresponder a esse ideal e projecto e em alguns aspectos o perverteu.
Poder centralizado e burocratizado em vez de poder dos trabalhadores. Estatização completa da economia. Perda de ligação viva do governo e do partido com a classe operária e as populações. Ouvidos fechados à crítica. Não realização da prometida democracia "mil vezes mais democrática que a mais democrática das democracias burguesas". Intolerável abuso de métodos repressivos. Dogmatização da ideologia do partido e sua imposição como doutrina do Estado.
Já num processo avançado de degradação, a "perestroika" prometeu correcção e viragem: com mais democracia "mais socialismo". Não cumpriu. Renegou a revolução. Renegou tudo quanto o povo havia realizado, alcançado e vitoriado. Renegou a luta heróica dos que deram a vida. Renegou democracia e renegou socialismo.
O desmoronamento da URSS e a evolução para o capitalismo - com o caos económico, a liquidação de direitos sociais, as guerras internas, os "gangs" de súbitos milionários, o proliferar de poderosas mafias, a vaga da corrupção do crime e da prostitituição - é uma terrível catástrofe e perda para os povos da ex-URSS. Perda terrível também para os povos do mundo, que deixa campo mais livre ao imperialismo para se lançar à ofensiva tentando liquidar à força todas as forças que se lhe oponham, e impor de novo o seu domínio mundial.
Explica-se que na ex-URSS e noutros países se observe o que já se chama "saudade do passado". Não no sentido de refazer um "modelo" condenado, mas para, rejeitando tudo quanto estava mal e muito era, recuperando direitos perdidos, valorizando realizações e experiência passadas, encontrando soluções novas, reempreender a construção do socialismo.

5. Nos últimos 150 anos, o capitalismo conheceu um desenvolvimento em ritmo acelerado. Novos passos na expansão mundial. Descobertas e conhecimentos das ciências. Tecnologias revolucionárias. Inesperado e vertiginoso desenvolvimento das forças produtivas nos países mais desenvolvidos.
Ganhou assim novo fôlego. Manteve porém a sua natureza exploradora, opressora e agressiva.
Estes 150 anos de capitalismo são assinalados por duas guerras mundiais que sacrificaram uma centena de milhão de vidas e destruíram países inteiros. Por outras guerras, agressões e intervenções militares. Pelo terrorismo de Estado. Pelos crimes e genocídios de ditaduras fascistas e de regimes autocráticos. Por rapinas devastadoras de recursos e violentas agressões ecológicas. Pela exploração colonial e neo-colonial e guerras coloniais.
É certo que, depois de sofrer grandes derrotas históricas que, com os comunistas, lhe infligiram os trabalhadores e os povos, o capitalismo conseguiu, na segunda metade do século XX, inverter de momento a tendência da evolução mundial que vinha a processar-se a favor do socialismo. E, ao mesmo tempo que agrava ainda mais a exploração e opressão de classe, as desigualdades, injustiças e flagelos sociais, proclama-se como um sistema final, um "capitalismo civilizado", no qual desaparece a luta de classes através de soluções de consenso, e no qual imperará o "pensamento único", ou seja, a ideologia do capitalismo, que se acoberta na proclamação do "fim das ideologias".
A verdade é porém que o capitalismo, passados 150 anos do Manifesto Comunista, nem sequer resolveu um único dos graves problemas da classe operária e das massas oprimidas apontados no Manifesto. E, ao findar o século, mostra-se incapaz de resolver os grandes problemas da humanidade, está roído por crescentes contradições. O que tem por diante não é o fim da luta de classes mas um novo e inevitável fluxo da luta dos trabalhadores e dos povos e novas explosões revolucionárias na continuidade da luta anunciada e lançada há 150 anos pelo Manifesto Comunista.
Por muito difícil que seja o percurso, o socialismo, aprendendo com vitórias e derrotas, continua a ser a verdadeira alternativa.

6. As teorias de Marx e Engels, das quais o Manifesto Comunista faz uma primeira síntese, revolucionaram o pensamento e as sociedades no século XX.
A sua expansão mundial foi possível por explicar o que até então não tinha explicação. Sobre a relação do ser humano com a natureza que o envolve. Sobre as contradições e história das sociedades. Sobre a economia capitalista e suas leis. Sobre a actualidade da construção revolucionária de uma nova sociedade. Porque científicas e dialécticas, teorias abertas à reflexão e contrárias à própria cristalização.
As conquistas das ciências, as transformações provocadas pelas novas tecnologias, a internacionalização a nível mundial dos processos produtivos, as alterações na composição social das sociedades, incluindo na composição do proletariado, obrigaram e obrigam a novas respostas e a um novo rigor dos princípios teóricos.
Curioso que certos estudiosos, quando falam do marxismo, investigam o pensamento de Marx antes de este ter formulado as grandes conclusões teóricas. Ou seja: de quando Marx ainda não era marxista. O marxismo há que considerá-lo em movimento, acompanhando a vida.
Lembre-se que, apenas passados 50 anos do Manifesto Comunista, já o desenvolvimento do capitalismo exigia novos acertos teóricos. Lembre-se que coube a Lénine definir o capitalismo monopolista, "o imperialismo etapa suprema do capitalismo", como indica o título da sua obra célebre. Neste e noutros aspectos, negar ou recusar o pensamento de Lénine é negar o marxismo ao longo do século XX. Não foram infelizmente poucos os que, começando por negar Lénine acabaram por negar Marx.
A ideologia que inspirou as transformações e conquistas revolucionárias do século XX é correctamente designada por marxismo-leninismo.
Além do mais, porque a teoria adquiriu na sociedade força material quando amplas massas a tomaram como sua e, mesmo que conhecendo e assimilando apenas aspectos essenciais, sentem nela inspiração para lutarem com convicção, coragem e confiança. O marxismo-leninismo foi a grande ideologia revolucionária que inspirou e encaminhou as grandes lutas, realizações e experiências libertadoras de transformação social que marcam para sempre o século XX, na história da humanidade.
Não sem um percurso acidentado. Tanto tendências revisionistas como dogmáticas têm com frequência incapacitado de responder criativamente às transformações da realidade. Se muitas respostas têm sido dadas, muitas mais estão por dar.
Entretanto, princípios fundamentais continuam válidos e continuam não só a explicar o mundo, mas também a indicar como transformá-lo.

7. Uma breve referência:
Válidos os princípios fundamentais do materialismo dialéctico que, rejeitando verdades absolutas e eternas, confia no conhecimento científico.
Válida a confiança no conhecimento das realidades exteriores ao ser humano dispensando a imaginativa crença em forças sobrenaturais que testemunha a insuficiência do saber.
Válida a descoberta do modo de produção, das relações de produção, como determinante "em última instância" da vida social.
Válido, como o Manifesto Comunista proclama, que "a história de todas as sociedades até agora existentes é a história da luta de classes".
Válido que uma política de classe, de exploração e opressão de classe, é característica da política dos governos dos estados capitalistas.
Válidos os princípios fundamentais da teoria económica, nomeadamente da teoria da mais-valia "pedra angular da teoria económica de Marx".
Válido que o capitalismo, tal como sistemas anteriores, contêm contradições que, em determinado momento histórico, conduzem à sua substituição e que, como indica o Manifesto Comunista, entrámos num tal momento histórico.
Válido o objectivo, a necessidade e a possibilidade de construir uma sociedade nova, que liquide a exploração do homem pelo homem, que erradique as grandes desigualdades, injustiças e flagelos sociais.
Não é por insistência dogmática, mas porque a vida o comprovou nos 150 anos decorridos desde o Manifesto Comunista, que se afirma a validade e actualidade de princípios essenciais.

8. Não foi apenas a escolha de um nome, mas uma declaração programática, ter sido editado o Manifesto Comunista com o título de Manifesto do Partido Comunista.
O projecto, não só de luta com objectivos a curto e médio prazo, mas de superação do capitalismo e de construção do socialismo continha, como um elemento central, a existência e acção não só de um novo partido, mas de um partido novo.
Um partido independente dos interesses, dos objectivos, da ideologia das forças do capital. Um partido da classe operária, como sublinhou Engels, "constituído, não como a cauda de qualquer partido burguês, mas sim como partido independente, que tem o seu próprio objectivo, a sua própria política".
Grandes e pequenas vitórias da causa comunista, a capacidade de resistência às mais violentas perseguições, pressões e tentativas de liquidação, devem-se à existência de partidos assim concebidos, embora com diferenças resultantes de lutarem em diferentes condições e terem diferentes percursos e história.
Inversamente muitas derrotas resultaram do facto de partidos se terem afastado dos ideais comunistas. Da ligação viva com a classe operária e as massas populares. Da sua natureza e independência política e ideológica de classe. Dos seus objectivos revolucionários. Do património histórico da luta. Da sua identidade que diferencia um partido comunista dos outros partidos. Seguindo tais caminhos, alguns partidos acabaram por dissolver-se ou converter-se noutra "coisa". Outros, evoluindo nesse sentido, absorvem-se em conflitualidades internas susceptíveis de conduzir a rupturas.
Neste findar do século XX, tal como quando foi proclamado o Manifesto Comunista, tanto a luta por objectivos a curto e a médio prazo, como a luta pelo socialismo, continuam a não poder dispensar partidos comunistas, com este ou outro nome, mas convictos e confiantes nos traços essenciais da sua identidade.
Concretamente: A natureza e política de classe. A ligação à classe operária e às vastas massas populares. A defesa dos seus interesses e direitos. O objectivo da construção da sociedade socialista. A firmeza ideológica. A solidariedade internacionalista tendo como raiz o internacionalismo proletário. E também respeito pela verdade, convicção, confiança e coragem.

Leia-se ou releia-se o Manifesto Comunista. Passe-se em revista, sem ideias feitas nem preconceitos, a história dos 150 anos decorridos. Não se apresente como novo o que já é velho e revelho nem se diga ser velho o que é historicamente novo. Não se insista em proclamar que morreu o que está vivo e que viverá para sempre um sistema social já historicamente condenado. A história indica e a vida mostrará que o futuro não pertence ao capitalismo mas ao socialismo e ao comunismo."

"O Militante" Nº 233 - Março / Abril - 1998

domingo, 4 de julho de 2010

Questões...





Liberdade

“Estou condenado a ser livre” escrevia Sartre como a síntese de um paradigma existencialista transversal. Esta concentração da racionalidade sobre o homem, vem recentrar o debate filosófico sobre a Humanidade. Aliás, Jean-Paul Sartre afirmou mesmo que “o humanismo é o existencialismo”.

Independentemente do impacto inegável que o contributo desse pensador nos trouxe, particularmente tendo em conta o momento histórico em que o fez, é importante relativizar a absolutização da liberdade que acaba por, de alguma forma, estar latente no pensamento sartriano.

Se o pensamento lógico, o raciocínio do ser humano, é baseado em premissas que partem de conceitos e, de acordo com o existencialismo ateu de Sartre, é essa propriedade humana que lhe confere a liberdade, então não poderemos absolutizar os graus de liberdade a que Sartre alude na sua obra e legado filosófico. Também é certo que Sartre bem distingue entre o acto e o não-acto, assim eliminando confusão entre a liberdade e a não-liberdade, relacionando essa distinção com a presença ou ausência de consciência da acção, ou com a presença ou ausência de vontade da acção.
E também não existe na obra de Sartre uma eliminação das assimetrias de classe e sua repercussão nas estruturas racionais do Ser Humano. Porém, também não lhe é dada a dimensão que julgo ser justo atribuir a essas anisotropias sociais. Pois que o conceito de liberdade, se absolutizado, esbarra na evidência de uma realidade que diariamente o nega.

Pois que se a liberdade é o resultado da soma das operações racionais e se traduz na possibilidade inalienável de escolha do Ser Humano, então a quantidade de variáveis disponíveis condiciona o grau de liberdade. Essa análise não é hoje suficientemente consolidada pelos acólitos burgueses do existencialismo pós-Sartre. A absolutização do conceito de liberdade, a sua dramatização como forma de constatação de eloquência intelectual, reflecte-se afinal na supressão das diferenças inerentes ao facto de existirem diferentes graus de cultura, de consciência e de acesso à informação. Em sentido figurado, se o raciocínio humano fosse um puzzle, ele só pode ser construído se o sujeito tiver à sua disposição todas as peças. Nessa analogia, as peças serão precisamente a informação, a cultura, o conhecimento, a experiência. A partir do momento em que existe uma condicionante à disponibilidade de cada uma das peças, então também o resultado final do puzzle está condicionado.

Obviamente que o pensamento humano não pode ser simplificado ao ponto de uma equação ou de um algoritmo simples. No entanto, com a necessária consideração das óbvias diferenças no grau de complexidade, podemos comparar o condicionamento do pensamento humano como a condição dos resultado s de uma equação. Claro que a caracterização de uma função matemática está condicionada pelo universo a que pertencem as variáveis. Da mesma forma, o resultado de um equação pode ser determinado em função do universo de trabalho. Por exemplo, se x^2=2, x E R é uma equação de resultado simples, com x=(raíz de 2) ou (simétrico da raíz de 2), já a mesma equação mas com x E N não tem solução possível.

Ora, sem querer obviamente comparar a estrutura racional humana a uma mera equação linear, certo é que mesmo a criatividade e inteligência (capacidades que determinam soluções onde aparentemente são impossíveis) estão condicionadas ao estímulo ou ausência dele. Caso contrário, a evolução tecnológica, artística, científica e cultural da Humanidade não seria um processo gradual, mas sim absoluto e momentâneo.

Ou seja, o conjunto das peças, dos elementos, das variáveis culturais, sociais e económicas, à disposição da capacidade intelectual de cada Ser Humano determina em grande parte a amplitude da sua liberdade. Independentemente da sua inteligência, das suas capacidades intelectuais, o grau de acesso à informação e ao conhecimento, condiciona o grau de liberdade para a acção e para a escolha.

Daí a forma tentacular e fortemente controladora como o sistema capitalista, as corporações e os estados subservientes, condicionam a disponibilidade de informação e impedem a difusão da consciência dialéctica e bloqueiam o raciocínio materialista através dos meios de comunicação e educação de massas. A limitação do conjunto de variáveis disponíveis para o pensamento, determina assim uma gradação de liberdades em função do posicionamento de cada indivíduo no tabuleiro da luta de classes. Não nos referimos aqui à liberdade legalmente considerada, nem tampouco à liberdade económica que está manifestamente afectada de brutais constrangimentos e garrotes em função da posição económica de cada um. Não é necessário grande estudo para rapidamente verificar que essa liberdade material está inteiramente dependente do papel de cada um na sociedade capitalista.
O Explorador detém um grau de liberdade material infinitamente superior à do Explorado. O patrão detém um conjunto de liberdades materiais que o seu empregado não detém, nem poderá alguma vez deter enquanto for trabalhador e não se tornar ele próprio em patrão. Mas no que à liberdade intelectual diz respeito, o processo não é tão diferente quanto isso.

É certo que Sartre tem razão quando afirma que o Ser Humano não pode escolher não escolher, pois essa a única liberdade que não lhe assiste. Está, pois, condenado a ser livre. Mas há toda uma hierarquização dos graus de liberdade que, incontornavelmente, se verifica entre os homens e impede a absolutização do conceito. Por exemplo, um trabalhador ofendido nos seus direitos laborais pode optar, no plano intelectual e racional, pela luta ou pela capitulação. É um facto, ele pode. Não podemos é, no entanto, negar que existem diversas formas de limitar essa capacidade de escolha. Se o trabalhador em causa não tiver acesso a dados sobre lutas de trabalhadores noutros casos, se o trabalhador não tiver acesso a informação sobre organização sindical dos trabalhadores, sobre os mecanismos de exploração capitalista, sobre os resultados de outras situações semelhantes, e se o mesmo trabalhador apenas dispuser de informação sobre trabalhadores que capitularam e que não se organizaram, negociando posições menos favoráveis mas mais favoráveis que o desemprego, então esse trabalhador terá certamente uma tendência para optar pela capitulação. Isso significa objectivamente que o grau de liberdade desse trabalhador está limitado.
Como tal, existindo limitação, e sendo essa limitação diferente de indivíduo para indivíduo, e em função da hegemonia cultural de classe em vigor em cada momento histórico, então a liberdade de escolha, sendo real, não é absoluta.