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sábado, 3 de dezembro de 2011

Processo 95 385





Este país é cada vez mais um país de almoços de negócios em escritórios de empresas onde quase sempre há um “mordomo fardado de branco” e se come “invariavelmente peixe”, seja com “ministros, presidentes de bancos ou empresários”.

Tudo é um esquema que na maior parte dos casos espelha a verdade do que é a classe politica dirigente dos dois principais partidos, como esquema, não exclui que a diversidade luxuriante dos indivíduos conduza, de quando em vez, a excepções. A politica não é monótona, pelo que temos que a percorrer com todo o cuidado, se não quisermos ser atropelados pelo nosso próprio simplismo.


É com se, de repente, umas tantas centenas de cérebros se tivessem acendido, por força de uma providência que a todos nos transcende, e tivessem assumido, em conjunto, a generosa tarefa de iluminar o espírito dos actores políticos mais ostensivos e, principalmente, dos timoneiros que conduzem o aparelho de Estado
Cumplicidades. Trocas de favores. Rui Verde, ex-dirigente da extinta Universidade Independente (como vice-reitor e presidente da direcção da SIDES, sociedade proprietária da UnI), um homem que desde sempre teve “uma certa inclinação pelo PSD”, escreve sobre as relações desta instituição de ensino privada com os políticos. E sobre a sua própria tentativa de aproximação à política – começou por tentar singrar contratando três agências de comunicação.



No livro O Processo 95385 (de Rui Verde, Livros d’Hoje - Publicações Dom Quixote e Exclusivo Edições), aquele que é um dos 24 arguidos no processo Universidade Independente, a instituição de ensino privada que fechou portas em Outubro de 2007 a mando do então ministro Mariano Gago, fala também dos “jotas”, governantes e ex-governantes dos dois principais partidos políticos que passaram pela instituição de ensino. E dos dias na prisão. “Aqueles advogados caros que eu tinha sustentado ou aqueles que tinha lançado na profissão desapareceram. Fui preso sozinho.”



Num processo que está ainda a decorrer, Rui Verde é acusado de burla, corrupção activa, falsificação de documentos e fraude fiscal.


1. A Independente e os “jotas”
“A universidade era um meeting point [ponto de encontro] para os políticos”, escreve Rui Verde. Que claramente não tem grande opinião de muitos dos que lá passaram. “Jovens ambiciosos procuravam nela algum título para decorar a sua ignorância.”
E continua: “Tivemos muitos alunos provenientes das chamadas ‘jotas’ (...) a maioria queria o diploma apenas por uma questão de respeitabilidade externa. Faltavam o mais que podiam às aulas, procuravam inventar as mais estranhas épocas de exame e o curioso é que a lei os favorecia: bastava uma candidatura qualquer e todo o processo de avaliação era subvertido. Não me recordo de favores concretos, mas recordo um laxismo e desinteresse completo pelo saber (...). Saber, para eles, é conhecer quem mexe os cordelinhos na concelhia, quem nomeia o director do hospital e por aí adiante.”



2. A Independente e os “ex” do Governo
Se os “jotas” iam acabar cursos, os “ex” iam dar aulas, continua o livro de Rui Verde. “Outra gente que apareceu em barda na universidade foram os ‘ex’ (...) Quem saía dos governos buscava lá algum consolo intelectual e respeitabilidade pública – além de ir também, por vezes, procurar negócios. Geralmente, quando caía um governo já sabíamos que nos iam aparecer vários ex-ministros ou ex-secretários de Estado à porta.”
Nunca iam directamente, diz. Eram sempre aconselhados por algum “amigo” que “dizia que fulano tal tinha imenso potencial e know-how e poderia ser uma excelente aquisição para a universidade.” O que acontecia depois dessas sugestões? “De um modo geral, fazíamos pressurosamente o convite. As questões raramente eram monetárias. Se bem que todos quisessem uma remuneração, o ponto estava em serem considerados professores universitários. A verdade é que todos começavam os anos lectivos, mas poucos os terminavam, entregando rapidamente a tarefa a assistentes.”
Rui Verde admite que estes professores convidados não estavam na universidade para dar aulas, “mas para trocar favores”. O certo, lamenta, é que não foram assim tão gratos, lamenta. “Nunca obtivemos qualquer favor quando precisámos.”




3. O “gentleman” João Jardim
Pela Independente passaram muitas figuras públicas – políticos, jornalistas, empresários. E sobre várias delas Verde tece considerações. Umas elogiosas. Outras longe disso. De Alberto João Jardim, por exemplo, Verde diz ter a melhor impressão. “Um verdadeiro gentleman. Acedeu a dar aulas através do contacto de um madeirense que leccionava na Universidade Independente. Encarregou-se do seminário final do curso de Administração Regional e Autárquica, curso muito inovador que formou vários quadros para as autarquias portuguesas (...) Deu as suas aulas de forma gratuita e com muito empenho.”



4. O “pecado original”
A Independente nasceu com problemas. Começou mal, nas palavras de Verde. E acabou pior – numa “espiral de débitos terrífica”.
A certa altura Rui Verde conta aquilo a que chama “a história de Saul Maia de Campos, o empresário de construção civil e vice-presidente do Futebol Clube do Porto”. Um dia, Maia Campos terá proposto a Luís Arouca, (reitor e) fundador da universidade, que instalasse a nova instituição de ensino que estava para surgir num edifício que estava a construir. “Em Setembro de 1993, na véspera da ocupação do edifício e um par de semanas antes da abertura da universidade e da sua primeira aula, surge o empresário nas instalações com um contrato na mão. Do seu Mercedes alongado, envergando o habitual fato amarelado, que condizia com o seu cabelo alouradamente pintado e os seus inesquecíveis sapatos de verniz branco, sai risonho e chama Arouca. Não assisti à conversa, mas sei que no fim Arouca surge branco, com um contrato na mão que oficializava a nossa permanência na universidade como arrendatários por um valor exorbitante. Os gestores da universidade assinaram o contrato e demitiram-se logo de seguida. Esse contrato criou um défice tremendo na gestão da universidade que nunca foi ultrapassado. Foi, para usar a linguagem bíblica, o pecado original da Universidade Independente.”



5. O “amigo” Jorge Neto
Para dar “músculo financeiro e relacional” à instituição de ensino, procuraram-se apoios, escreve Rui Verde. “O papel do advogado Jorge Neto, por essa altura deputado do Partido Social Democrata e secretário de Estado da Defesa, foi central, pois, por mera amizade a mim, disponibilizou contactos com uma série de personalidades influentes do nosso mundo empresarial.”



6. Ilídio Pinho e os inebriantes almoços com o poder
Ilídio Pinho, “dono de uma das maiores fortunas do país, homem do Norte, amigo de Mário Soares”, foi um dos empresários a quem foi pedida ajuda. Mas Verde lamenta que as lições de gestão que o “homem do Norte” procurou dar à Independente se limitassem a “cortar custos e cortar custos.”
“Várias vezes fui ao seu escritório no Porto, ouvi-lo e tentar aprender alguma coisa. E aprendi, mas tive dificuldade em pôr em prática os seus ensinamentos”, escreve.
E continua: “O escritório do comendador Ilídio Pinho fica numa torre moderna perto da Boavista e tem muitas salas com uma decoração minimalista, polvilhadas de quadros valiosos. As reuniões decorriam no seu gabinete, com uma bela vista, e terminavam com um almoço nas instalações – invariavelmente peixe. Peixe foi, aliás, o que encontrei sempre que almocei com ministros, presidentes de bancos ou empresários nas suas salas de jantar privadas. Não se pense que os negócios se fazem habitualmente em restaurantes caros. A maior parte destas pessoas tem salas de jantar nos seus escritórios, e é lá, no recato do seu cantinho, que recebem, acompanhados por um discreto mordomo fardado de branco, aqueles com quem querem conversar tranquilamente. O que se come nesses almoços não é importante. Importante é a ambiência – em que nos sentimos recebidos no sanctum sanctorum dos mais importantes e, por isso, ficamos com uma certa tendência a concordar com tudo.”
Concordando ou não, Verde diz que ainda se esforçou por “organizar a universidade” como Ilídio Pinho recomendava, mas essas recomendações não se adequavam à realidade da instituição de ensino: “E num dia em que procurámos apresentar, no Conselho Geral, os resultados das nossas tarefas de racionalização e pedir-lhe apoio financeiro (não pessoal, mas junto do BES), levámos uma desanda monumental, como se fôssemos atrasados mentais. A nossa relação nunca recuperou desde então.”




7. A Independente, o PS e o PSD
“Havia, na Universidade Independente, a ideia de que Luís Arouca cobria a área ligada ao Partido Socialista e eu a área ligada ao Partido Social Democrata”, escreve Rui Verde.




8. O ex-aluno Vara
Armando Vara é outro nome citado. Também ele tirou o curso na Universidade Independente – conclui-o três dias antes de ser nomeado administrador da Caixa Geral de Depósitos de onde viria a sair para o BCP. Na opinião de Rui Verde, foi um dos que não ajudou a universidade quando ela precisou. “Quando, em finais de 2005, o grupo que tradicionalmente controlava a maioria do capital da entidade instituidora da universidade se viu confrontado com uma espécie de takeover comandado pelo ministro de Educação de Angola, procurou apoio de Vara, na altura administrador da Caixa Geral de Depósitos e, por essa via, supervisor das actividades da Fundimo, o fundo que detinha o prédio onde a universidade estava instalada”, escreve Rui Verde.
Verde e Arouca terão então combinado um encontro com Vara na sede da CGD, em Lisboa, “esse monumento à loucura dos banqueiros”, e reuniram com ele no seu gabinete (“a decoração é pobre e funcional sem qualquer referência pessoal, só a vista é bonita”). “Atendeu-nos com toda a simpatia e comprometeu-se claramente, dizendo que, se retomássemos o controlo da sociedade, teríamos todo o apoio dele e da Caixa Geral de Depósitos. Eu saí bastante contente. Curiosamente, Arouca não embandeirou em arco e fez-me uma prelecção acerca de não confiarmos nestas pessoas. Tinha razão. Passados dois ou três meses, retomado o controlo, fomos falar novamente com Vara.” A ajuda não chegou, diz.




9. O “sucesso” de Hermínio Loureiro
“Hermínio Loureiro (presidente da Câmara de Oliveira de Azeméis, ex-secretário de Estado do Desporto nos governos do PSD e deputado) terminou o curso na Universidade Independente para se candidatar, licenciado, a presidente da Liga de Futebol. Era uma figura cordial, preocupada com a dieta. Conheci-o por intermédio de um amigo comum que proporcionou um almoço no Solar dos Presuntos, restaurante bem conhecido pela fartura da bebida e da comida nortenha. Pois bem, não é que o simpático deputado só comeu peixe grelhado e bebeu água? Que desânimo! (...) No final [da licenciatura], veio agradecer-me e perguntar do que é que eu precisava. Garanti-lhe que não precisava de nada e só lhe desejava sucesso. Respondeu-me, simpaticamente: ‘O meu sucesso será o seu sucesso!’ Não foi.”




10. Como entrar na política
O capítulo “Ligações perigosas: o Partido Social Democrata”, começa da seguinte forma: “Conto a minha história. Desde pequeno sempre tive uma certa inclinação pelo PSD. Era do Benfica e do PSD. Não havia nada de especialmente racional nessa escolha.” Certo, explicará adiante, é que há um momento em que sente que deve entrar na política. Era professor, doutor em Direito, tinha uma carreira profissional e uns “artigos escritos nos jornais”, por isso resolveu “colocar as antenas no ar para saber como poderia aderir e fazer alguma coisa no PSD.” O que basicamente lhe disseram foi: “Arranja uma agência de comunicação, que eles tratam disso.”
Verde arranjou “não uma, mas três agências de comunicação”, conta. Seguem-se os detalhes das diligências feitas por estas. E os resultados: por exemplo, integrou um grupo de professores universitários que fez estudos para a distrital do PSD. “Deram-nos graxa e produzimos uns relatórios, que rapidamente foram esquecidos ou que apareceram nos jornais para fazer manchetes como se fossem ideias avançadas pelo Dr. [António] Preto. Comecei a perceber que éramos uma espécie de penachos do partido. Uma espécie de imbecis úteis.”


11. Os advogados mandam.
Os artigos que vai publicando nalguns jornais levam-no ao contacto com ministros do PSD, continua. É convidado para conferências e debates, caminho que “curiosamente foi feito sem apoio dos agentes de comunicação”. Mas, uma vez mais, acaba por desiludir-se.
Rui Verde conta, por exemplo, que um dia a ministra do Ensino Superior Maria da Graça Carvalho marcou uma reunião para o ouvir sobre a reforma do ensino superior privado. “Para meu espanto, são-me apresentados dois advogados bem-postos – uma esbelta senhora loura, vestindo as marcas adequadas, e um rapaz mais novo, com a tradicional camisa branca engomada –, pertencentes a uma dessas sociedades de advogados chiques e a quem eu deveria expor as minhas ideias. Percebi que não eram o ministério e a sua equipa que faziam as leis. Estas eram encomendadas a escritórios de advogados! Fiquei perplexo.”



12. A Independente, a Maçonaria e o Opus Dei
“Não se pode dizer que a Maçonaria não estivesse na Universidade Independente. Esteve e foi representada ao mais alto nível. No entanto, não se notou a sua influência”, escreve Verde. Sobre o Opus Dei acrescenta: “As pessoas que conheci do Opus Dei sempre me pareceram muito cordiais, correctas e sem qualquer plano estabelecido, às vezes até algo perplexas com o poder e intuito de domínio que lhes atribuíam. Tiveram muitos contactos com a Universidade Independente, designadamente para a fusão de uma instituição de ensino superior que detinham no Lumiar. Não vi em exercício o poder que lhes atribuíam, até porque essa instituição fechou ou esteve prestes a fechar.”



13. O dia da detenção
“Estava só, quando fui preso. Nem sequer um advogado comigo. Aqueles advogados caros que eu tinha sustentado ou aqueles que tinha lançado na profissão, entregando-lhes causas importantes ou menos importantes, desapareceram. Fui preso sozinho.” Eram sete da manhã do dia 21 de Março de 2007.
“Três inspectores corteses da Polícia Judiciária bateram-me à porta, sugeriram que me vestisse e convidaram-me a acompanhá-los numa viagem a vários locais (...) E lá fui, sozinho, estando preso, mas não percebendo que o estava. Meti-me num carro discreto alemão, talvez um Audi A3 – daqueles que a polícia apreende e depois usa alegremente.



Seguiram até à quinta que eu tinha no Ribatejo e, quando estávamos a chegar, pediram que ligasse à empregada para prender os cães. Assim fiz, percebendo que estavam bem informados. Ou talvez não, pois insistiam que queriam ir ver a casa no Algarve, local onde não tinha nem nunca tinha tido qualquer casa. (...) Passei o dia com a polícia em voltinhas pelas casas e lojas – as reais e as inventadas. Só ao fim do dia, quando cheguei à sede da polícia, é que comecei a achar que algo de muito mais anormal se passaria.”
À noite, na sede da Polícia Judiciária – “[o ramo financeiro] parece uma simples repartição pública com secretárias amontoadas e dossiers pretos, tudo encavalitado num prédio de habitação” – ouviu uma voz feminina: “Queixava-se de que a procuradora era frouxa pois tinha chegado ao escritório de advogados (disse o nome dos meus advogados) e acagaçara-se toda, em vez de entrar por lá adentro. Percebi que tinham ido ao escritório dos meus advogados. A propósito, onde é que eles estavam?”
As horas passavam. “Depois de ter falado, já noite bem entrada, não percebendo bem o que me estava a acontecer – ao contrário dos filmes, ninguém me lera os direitos nem sequer me explicara o que estava ali a fazer –, fui confrontado com um papel que determinava a minha detenção, por comandar um poderoso grupo criminoso da alta finança internacional com ramificações pelo mundo inteiro.”
Segundo descreve, no dia seguinte, momentos antes de ser presente a um juiz, continuava sem advogado.


14. Ratos e banhos de água fria
Rui Verde é detido por suspeita de prática de vários crimes (burla agravada, abuso de confiança e falsificação de documento). Os dias na prisão são descritos com detalhe. “Quem é preso fica marcado para toda a vida. É um lugar-comum, mas é verdade. Sabemos que nunca mais seremos olhados da mesma forma, nem nunca mais olharemos o mundo da mesma forma.”



Descreve o edifício onde viveu durante meses como “um torto cubo branco de três andares, polvilhado ao acaso com pequenas janelas gradeadas que literalmente faziam ver o Sol aos quadradinhos”. Mas conta mais: a rotina, que é sempre igual (“Às 07h45, postado à porta da cela, posição vagamente militar, pernas abertas, mãos atrás das costas e barriga encolhida. Um guarda faz a contagem, como um general ensonado que não confia nas suas tropas.”); descreve também os diferentes “camarotes” (“Os piores são os que ficam na parte inferior do edifício. Neles se juntam por vezes mais de quatro presos, as retretes não funcionam, as baratas fazem concorrência com os ratos, os canos de água rebentam pelas paredes. Os melhores camarotes ficam no topo do edifício – são individuais, as baratas são facilmente apanhadas e tudo funciona razoavelmente bem”); e descreve por fim como Agosto o marcou (“O aquecimento da água avaria e passa-se a tomar banho de água fria, o número de guardas diminui e por vezes há atrasos na abertura das celas”).

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