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domingo, 28 de março de 2010

União Europeia fracasso anunciado



A criação da moeda unificada foi fruto de uma trajectória política para criar um mercado realmente único na Europa. Como tal, remonta ao próprio Tratado de Roma, que criou em 1957 a Comunidade Económica Europeia (CEE), predecessor da actual União Europeia. Só em meados dos anos 80 os governos aprovaram o Tratado de Unificação Europeia, que teve como meta a complementação do mercado interno comum até 1992, garantindo a livre circulação de mercadorias, capitais e pessoas. A intensificação da unificação tinha por objectivo preparar a Europa para os novos tempos e enfrentar a competição com o Japão e os EUA. As empresas reagiram rapidamente com a abertura total das fronteiras e iniciaram um processo de reorganização já caraterizado por uma onda de aquisições e fusões. Os trabalhadores começaram a sentir cada vez mais esvaziados seus espaços de negociação nacional e o peso do desemprego crescente. A Inglaterra, durante o governo Thatcher, se opôs a qualquer regulamentação da questão social usando seu poder de veto. Em 1992, o Tratado de Maastricht definiu os critérios e metas para a próxima fase da unificação, que deve remover a mais decisiva barreira para a criação de uma economia integrada em escala continental, como a dos EUA: a União Monetária Europeia.
Já existia desde 1979 o Sistema Monetário Europeu (SME), mas este se restringia a controlar as flutuações entre as moedas, ou seja, deveria ajudar na coordenação da actuação dos respectivos bancos centrais e não substituí-los. Ataques especulativos e problemas económicos nacionais colocaram várias vezes o SME em crise.
O Tratado de Maastricht estabeleceu quatro critérios de convergência: defices público abaixo de 3%; dívida pública menor de 60% do PIB; inflação no máximo 1,5% superior à media dos três países com menor índice de inflação; e taxa de juros a longo prazo não mais de 2% superior à média dos três países com a menor taxa. Sem dúvida foi o primeiro critério que mais teve impacto, exigindo dos governos nacionais um grande esforço de austeridade fiscal e criatividade contábil. Isso criou não só resistências como também bastante cepticismo em relação à capacidade de manter o organograma. Na fase de formulação e implementação surgiu uma tensão entre a França e a Alemanha. Na própria escolha do presidente do Banco Central Europeu houve uma disputa entre o candidato apoiado pelo governo alemão, o holandês Wim Duisenberg, e o candidato do governo francês, Jean-Claude Trichet, actual presidente do Banco Central Europeu.
A grande preocupação era trocar o marco alemão, considerado estável, por um euro enfraquecido exposto a pressões inflacionárias. Por isso a Alemanha insistiu na visão de um banco central independente, ao passo que na tradição monetária francesa o banco central sempre segue as directrizes da política. O governo alemão insistiu também numa interpretação rígida dos critérios de Maastricht e além disso exigiu a adopção do Pacto de Estabilização, que implica sanções quase automáticas para os países que porventura o descumprirem depois de ingressar na União Monetária Europeia. Com isso ficou claro que não existiu margens para políticas económicas nacionais, mesmo quando não existirem ainda mecanismos em nível europeu de compensação ou intervenção para lidar com os possíveis problemas causados pela grande diversidade das economias envolvidas.
O Pacto de Estabilidade, aprovado na Cúpula dos chefes de estado da UE em Amsterdão, prevê multa de 0,1% sobre o PIB por ponto acima do limite de 3% do défice público. Existe uma sensação generalizada nos demais países da UE de que o projeto alemão seria levar a Europa a aceitar que o euro e o BCE fossem apenas uma nova versão do marco e do Bundesbank: a política económica monetária imposta seria a imagem das rígidas políticas do banco alemão. A insistência do presidente do Bundesbank, no Pacto de Estabilidade, fez o ex-chanceler socialista Helmut Schmidt enviar uma carta aberta acusando-o de parecer "autoritário e dominador". Crítica forte neste sentido, Jean Pierre Chevenement, em entrevista ao Wall Street Journal: "O que a Alemanha não conseguiu em duas guerras mundiais, a hegemonia continental, está em vias de conseguir através de recursos financeiros em nome do livre mercado e de uma visão tecnocrática da Europa". Mas, de acordo com pesquisas de opinião, a própria população da Alemanha não viu nenhuma vantagem na unificação da moeda.
A consolidação do euro afectou a estrutura dos mercados financeiros internacionais de forma substancial e irreversível. Uma das mais instigantes mudanças no cenário internacional provocada pelo euro foi o fim do monopólio do dólar como moeda de reserva que ajudou os EUA a acumularem tranquilamente enormes deficits comerciais. O excedente acumulado pelos exportadores japoneses, por exemplo, volta aos EUA por intermédio da compra de títulos de valores norte-americanos. Se o euro conseguiu suficiente confiança, estas posições em dólares podem ser substituídas por euros. Não só os governos, mas também empresas e indivíduos teriam uma forte alternativa ao dólar nas suas opções de investimento. Ao mesmo tempo, a participação da UE no comércio internacional é um pouco superior à dos EUA e há de se esperar que parte do comércio da UE com países de fora passará a ser expressa em euro, substituindo o dólar. Bancos centrais de todo o mundo passarão a deter parcela relevante de suas reservas em euro.
Lembramos que o dólar conseguiu se impor como moeda de referência atrelada ao ouro nos acordos de Bretton Woods, em 1944. A força da sua hegemonia permitiu-lhe implodir este sistema do padrão ouro em 1971 sem que o dólar perdesse sua posição, dando início a todo o processo de liberalização dos fluxos cambiais que chegou, nos dias de hoje, a volumes incontroláveis. Há ampla utilização do dólar por parte de outros países, bancos e empresas não-americanos. A importância do dólar como moeda de transacção internacional excede o peso dos EUA no PIB mundial, hoje pouco superior a 25%. O dólar envolve 4/5 do total das transacções cambiais e mais de 60% das reservas de bancos centrais no mundo estão em dólar. Os EUA conseguiram resistir tranquilamente à concorrência do iene japonês e do marco alemão. Hoje, o iene é a moeda de troca só em 5% das transacções comerciais mundiais. Se a queda do muro de Berlim acabou da noite para o dia com a bipolaridade político-militar, a consolidação do euro pode criar quase abruptamente uma bipolaridade monetário-financeira. Se isso se confirmar, é prevista uma tensão entre duas moedas rivais com riscos de crises, que por sua vez aumentarão ainda mais a demanda por mecanismos de cooperação monetária em nível internacional. Para a França, há um grande interesse no euro como forma de defender suas aspirações políticas de pôr fim ao monopólio do dólar. O país sempre se caraterizou por um consenso que ultrapassa as fronteiras dos principais partidos políticos na contestação da hegemonia dos EUA.
Os E.U.A. ainda é o país maior devedor do mundo, com défices crónicos na balança comercial e baixas taxas de poupança. Para competir com o euro na atracção de capitais para fechar as suas contas, o Federal Reserve Bank dos EUA pode aumentar os juros, o que complicaria a situação das economias latino-americanas caso elas mantenham o seu atrelamento ao dólar.
Primeiramente porque tirou do âmbito da especulação todo o mercado cambial interno da UE. Por outro lado, o euro supostamente é forte demais se comparado ao dólar e ao iene para tornar-se alvo fácil de especulação. Ao mesmo tempo, se prevê uma concentração dos mercados de capitais na Europa, criando um grande mercado de títulos em euro e proporcionando uma fonte mais barata e disponível de empréstimos de longo prazo.
O critério que proíbe que o défice público ultrapasse 3% do PIB significa automaticamente uma diminuição forte da procura por parte dos governos nos mercados de capitais, o que amplia o espaço para lançamento de papéis privados e procura de novos mercados fora da Europa.
Existe a expectativa de que o BCE será tentado a promover e proteger o euro não com a baixa, mas com a elevação dos juros, para encadear um processo de sua valorização gradual em relação ao dólar. Da mesma forma, o BCE será obrigado a manter grandes posições em dólares, considerando a necessidade dos fluxos comerciais até que o euro se consolide. Se se confirmar a valorização do euro em relação ao dólar, isso pode ser positivo para países latino-americanos com suas moedas atreladas ao dólar, pois poderão exportar em condições mais favoráveis aos mercados da zona do euro. Junta-se a isso o fato de que a unificação monetária criou um mercado mais facilmente penetrável para exportações. Surgirá grande interesse por parte dos países latino-americanos nos acordos comerciais que a União Europeia vem discutindo ultimamente com o México, a América Central e principalmente o Mercosul, que já dirige cerca de um quarto das suas exportações para lá.
Os grandes beneficiários serão sem dúvida nenhuma as grandes empresas multinacionais que operam nos mercados da União Europeia. Elas não terão mais custos de volatilidade cambial, não precisarão mais equacionar os activos e passivos da cada empresa em cada país. Sem o obstáculo de risco monetário, que inibia a expansão dos mercados de bónus das empresas europeias, elas poderão enfim captar recursos financeiros pela região, barateando seus custos. E mais: com o enfraquecimento do poder de intervenção dos governos nacionais e sem a existência de um contrapeso em nível europeu, se torna sempre mais fácil para as empresas se livrarem das regulamentações do poder público. Ao mesmo tempo, facilitou-se o campo de actuação de tal forma que há de se esperar uma nova onda de reorganização, com fusões e aquisições. Os produtos fisicamente transportáveis, especialmente os de pouca diferença em termos de gostos nacionais, vão ser negociados nos mercados de toda a Europa por um número relativamente pequeno de empresas operando em escala continental. A tendência será de eliminar a superposição de operações existentes. Prevê-se o fechamento de milhares de unidades. Um dos primeiros sectores que deve ser alvo de tal reorganização é o de serviços financeiros, trabalhando com uma só moeda. Talvez só dez grandes bancos prevalecerão neste processo. A revista Business Week publicou estimativas de fechamento de quase metade das 166 mil agências bancárias espalhadas pela UE. Isso envolve dezenas de milhares de postos de trabalho. Às vésperas da unificação monetária, as fusões para racionalizar as empresas já cresceram 48%. Vale ressaltar o forte preparo por parte das empresas norte-americanas operando na Europa para enfrentar este desafio. Neste contexto, explica-se a agressiva expansão para a Europa dos bancos de investimentos de Wall Street. O processo de fusões, aquisições e migração de empresas levará a uma ulterior pressão sobre a legislação social, a regulamentação trabalhista e os impostos, ainda sob domínio da política nacional.
Por intermédio do euro, as empresas estão conseguindo, de forma indirecta, impor as mudanças que sempre defenderam. Neste sentido, o euro vem sendo chamado de "cavalo de Tróia". Evidentemente, haverá uma grande pressão também sobre empresas com menor competitividade. A transparência de preços deve mudar o comportamento nos mercados. Os preços tenderão a convergir rapidamente, acirrando ainda mais a competitividade. Só para se ter uma ideia, hoje, apesar da livre circulação dos bens, o preço de um automóvel pode variar de país a país até 50% para o mesmo modelo.
O capitalismo na Europa, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, foi caracterizado por uma forte presença do Estado pressionado pelas forças sociais para equilibrar e domesticar as forças do mercado. Criou-se o famoso Estado de bem-estar social, hoje alvo de forte ataques políticos e ideológicos, em contraposição ao capitalismo mais selvagem dos EUA, cujo modelo económico está sendo projectado como a melhor forma de organizar a economia capitalista avançada. O que as forças do mercado não conseguiram por meio do debate político nacional estão conseguindo por critérios aparentemente técnicos e pelo Banco Central Europeu.
A moeda é um aspecto essencial da soberania e, portanto, um instrumento de governo e não somente de funcionamento do mercado. Em primeiro lugar, a unificação da moeda limita de uma vez por todas uma série de disposições dos governos nacionais para interferir no processo económico. Por exemplo, o uso de políticas cambiais para aumentar a competitividade ou o uso de deficit orçamentário no contexto de políticas keynesianas, visando o combate ao desemprego. A unificação monetária não cancelou as nações, mas anulou uma parte de sua soberania. Em tese, a soberania perdida em nível nacional poderia ser recuperada em nível comunitário, mas isso não faz parte do projeto.
É importante enfatizar que não é a unificação monetária que começou a erodir o poder de intervenção dos governos nacionais. A globalização dos mercados financeiros e o crescente poder das empresas multinacionais já exigem há tempo a transferência de poder político a um nível supranacional. Mas a União Europeia nem teria peso económico para isso. Hoje o volume do seu orçamento corresponde a 1,3% do PIB total dos 15 países membros. Bastante inferior ao orçamento federal dos EUA, de 30% do PIB.
Paralelamente, há uma incrível falta de infra-estrutura política ao lado do Banco Central Europeu. Ficou famosa a pergunta de Kissinger: "quando quero falar com a Europa, a quem devo me dirigir?". Será que hoje a resposta é "a Wim Duisenberg", este ilustre membro do Partido Social Democrata holandês, nomeado primeiro presidente do BCE com aval do governo alemão?
O euro é apresentado no contexto da abertura comercial, globalização e formação inevitável do Estado europeu. Mas não escapa a ninguém a falta de entusiasmo da população, que está mais preocupada com os 17 milhões de desempregados na UE. Pesquisas de opinião indicam que metade da população ainda não consegue imaginar o que está acontecendo. A revista Economist não exclui um fracasso da unificação monetária por se adiantar demais à opinião pública. Ainda que pareça tratar-se de um processo amadurecido desde o Tratado de Roma, em 1957, o euro aparece perante a população comum como algo imposto de cima.
Os sindicatos estão sendo envolvidos ainda mais na rivalidade económica entre nações e regiões. A luta pela competitividade se dará através do mercado de trabalho, já que todas as outras variáveis serão fixadas. Excluiu-se assim dessa lógica qualquer pretensão de se chegar a uma unificação salarial ou negociação em nível europeu. Pelo contrário, aumenta a pressão para maior descentralização da política salarial, concessões nas regras trabalhistas e negociações caso a caso. À medida que o capital se tornar mais móvel, o trabalho irá ficando na defensiva. Os próprios cortes orçamentários para atingir os critérios de Maastricht, envolvendo benefícios de previdência e saúde, já aumentaram a desigualdade de renda nos países envolvidos.
As elites europeias prometeram que a nova Europa conseguirá competir no mercado globalizado e com o tempo criará emprego. Na realidade, a aposta é criar emprego baseado em desregulamentação, trabalho informal e temporário. A palavra de ordem: "todos os poderes ao mercado".
Já a Confederação Europeia de Sindicatos (CES) ficou perdida entre as declarações de boas intenções em relação à política social que obtém sempre como resposta por parte das autoridades da União Europeia, as possibilidades de acordos tripartite sobre moderação salarial, a flexibilidade do mercado de trabalho, a reorganização do Estado etc. De outro lado, convive com a cruel realidade da prática da política económica. Esta divisão se expressa sempre muito claramente à medida que não se consegue interferir nos acordos, como o Tratado de Maastricht ou o Pacto de Estabilidade, mas fica-se satisfeito com mais um anexo, ou declaração em separado. O anexo do Pacto de Estabilidade declara por exemplo que "é imperativo dar um novo impulso para manter decididamente o emprego em primeiríssimo lugar entre os temas da agenda política da União Europeia". Observa-se um contraste com a rigidez dos critérios adoptados pelas mesmas autoridades quando se trata de políticas de estabilização monetária ou políticas económicas restritivas!
Até quando se podem tratar os assuntos da pressão migratória como problemas da Justiça e não de justiça?

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